Como se fosse possível ir de verbo ao segredo de uma boca.

Talvez não tenha passado dum exercício de poesia. Já se sabe que romantizo tudo, tu, melhor do que ninguém, hipérbole do meu sentir. Não reparaste, com certeza, mesmo sendo quem repara em tudo. A verdade é que uma pessoa pode passar a vida toda sem se aperceber. Não seria, então, de estranhar. A memória, porém, é criatura estranha, acentua e ignora a seu belo prazer. No depois, todas as histórias de amor são bonitas e, mortos, todos somos santos. No final da vida, fomos todos felizes.

A linha imaginária do poema, anatomia abstracta que nunca decifraste, algures localizada entre o diafragma e o ponto retórico duma convicção, existe, afinal. Toquei a vertigem por duas vezes, como se o poema ali se escrevesse todo, um reencontro que era tanto de vontades como de identidades. Assombrei-me no que de nós se reconheceu, não só o corpo, mas o cheiro, o futuro, o que dizem da vida. Reconhecemo-nos como quem chega a casa. A mesma familiariedade de cada divisão, o sítio dos livros e dos tachos, a disposição solene dos móveis e bibelots, a forma como a palavra se constrói e coincide, um gesto a suceder ao outro num encadeamento que só a intimidade permite.

Certamente, não reparaste mas, foi assim quando primeiro sorriste contra os meus lábios, a felicidade a aparecer-me, como seria de esperar, pela boca. Faz tempo, ainda havia neve nas ruas. Depois, aquela eternidade de Verão nos olhos. Alguém que se olha e ali se pede e se dá licença, alguém que pergunta e outro que responde num rito que tem tanto de sagrado quanto profano. Eu, Marisa, tomo-te a ti. Este é o meu corpo, tomai e comei. Alguém que agradece e perdoa, como se ali se compusesse de novo uma canção. Obrigada por saberes cuidar de mim, tratar de mim, olhar para mim, escutar quem sou. Encontrei-me nos teus olhos e coube toda lá dentro e, entre aquele segundo e o beijo, disse-te tudo, tudo. 

Decerto não reparaste.

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